sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Dona Redonda

Era uma vez uma grande charneca a perder de vista, sem árvores, sem casas, sem culturas, sem água. Só terra dura e seca, mato raso, pedregulhos.
No meio da charneca havia um monte. Chamavam-lhe o Toutiço por ser redondo como a cabeça de um homem. e no cimo do Toutiço lá estava a hospedaria da Dona Catapulta que era a dona do Toutiço todo, de alto a baixo. O Toutiço era tão fresco e verdejante quanto a charneca era ressequida e agreste.
Havia ali ribeirinhos, lagozinhos, jardinzinhos, hortazinhas, vergeizinhos, bosquezinhos e, à sombra, banquinhos, cadeirinhas e mesinhas.
A hospedaria era toda ela torres e torrezinhas, varandas e varandinhas, janelas e janelinhas, escadas e escadinhas, alpendres e toldozinhos.
E por dentro havia quartos e quartinhos, salas e salinhas, cantos e cantinhos, tudo muito asseado e aproveitado e cheio de tapetes e tapetinhos, almofadas e almofadinhas, jarras e jarrinhas, quadros e quadrinhos, folhos e franjinhas, cortinas e cortininhas, enfim tudo que era preciso para agradar a quem gosta de coisinhas.
A respeito de conforto moderno, Isso então!
Ui! ui!!!
Banhos quentes, frios, mornos, turcos, duches de cima para baixo, de baixo para cima, de lado, de agulheta, de vapor, aquecimento central, aparelhos de telefonia, telefones, electricidade por todos os cantos, ventoinhas, enfim um nunca-acabar de essas comodidades que fazem dos homens carneiros, pavões e lesmas.
Mas felizmente todos estes aparelhos se escangalhavam regularmente e ninguém se servia deles.
...

Bruno - Onde é que moras?
Iria - Acolá, no Toutiço.
Bruno - O que é o Toutiço?
Iria - É um monte e, no alto, há uma hospedaria. A Hospedaria da Dona Catapulta.
Bruno - He, he, he. Toutiço... Dona Catapulta... que nomes esquisitos... Dona Catapulta é a tua mãe?
Iria - Que ideia!
...

Bruno - Deus as salve!
Mulheres em coro - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Velha - Ainda que eu mal pergunte, onde vão os meninos com este calor?
Bruno - Vamos à floresta, além. “Vossemecês” é que podem dizer se ainda há muito que andar. Decerto conhecem estes sítios.
A velha - Conhecemos, sim, senhor. Vamos todos os meses ao mercado comprar o que é preciso e passamos por este caminho. Mesmo a cavalo não chegam à floresta senão à noitinha.
Bruno - E que mercas levam vocês aí?
Filha -- São coisas que a gente vende lá na nossa terra: frutas, queijo, broas, doces e tachos, “infusas”, bonecos de pão-doce, santinhos, coisas assim.
Bruno – Vamos comprar-vos algumas coisas para a nossa merenda. Quero 2 queijos frescos, chouriço, um pote de mel... Ha! também quero peixe seco e algumas broas doces.... Quanto devo? A velha – Sete euros e trinta cêntimos... Mas o menino dá-me dinheiro a mais.
Bruno - Bem sei. O que vai a mais é para “vossemecê” comprar um lenço novo para a cabeça e um avental para a sua filha. Um avental cor-de-rosa.
Velha - Pois muito agradecida e Deus lhes dê saúde... Se calhar, os meninos vão visitar a Dona Redonda.
Iria - Dona Redonda? Quem é? Parece-me que já ouvi falar nela.
A velha - Nem admira. Toda a gente a conhece aqui nestes sítios. Ela e a canzoada toda, que é de a gente morrer a rir, todos com as mãozitas tortas e as pernitas muito curtas, e os corpos muito compridos... Parecem mesmo chouriços a correr e a ladrar com as vozes esganiçadas e as orelhas a dar a dar...
A filha – E a Dona Redonda muito redonda, que nem uma bola, e a Dona Maluka muito esguia e toda resoluta, e os meninos ... agora só lá tenho visto um ... e a mulatinha a dançar e a cantar ... gente melhor não há. É que ninguém pode estar triste ao pé deles.
A velha - Há quem diga que são bruxas e que os cães falam com elas e os pássaros e as árvores e tudo ...
A rapariga - Há até quem diga que têm lá um grande bicharoco todo coberto de escamas e com asas, que deita lume pelas ventas... Mas são lérias, se calhar.
A velha - Lá do bicharoco, não são lérias que eu bem o vi uma vez aqui nesta charneca, a puxar um automóvel e a rir às gargalhadas ...
Bruno - Hum ...
A rapariga - Lá o bicharoco nunca vi, mas vi a mulatinha trepar pelo tronco duma árvore arriba, mais ligeira que um gato... E vi o cágado do senhor Bàguezi, que é do tamanho de um carneiro e tem muitas figuras pintadas nas costas, e fala como um papagaio...
A velha - Cala a boca. A gente às vezes sonha coisas e cuida que é verdade. Há quem diga que lá na floresta tudo acontece de um modo esquisito e que anda por ali bruxaria. Mas cá por mim nunca lá encontrei senão boa gente... E vamo-nos embora, cachopa, que por este andar não nos acolhemos em casa senão de noite...
(continua nos próximos dias)


de "As Aventuras da Dona Redonda "
Texto de:
Virgínia de Castro e Almeida

Sem comentários: